Infinitos
solo show
Galeria Maria Martins, Rio de Janeiro
February/March 2006


Dupla percepção - paisagem exterior e paisagem interior
(critical text - sorry, portuguese only...)

Os três trabalhos apresentados por Ynaiê Dawson em sua primeira mostra individual possuem elos entre si, ou seja, não se trata de uma reunião arbitrária de obras dispersas, mas de uma busca por alinhavar um fio que unifique manifestações distintas. Os pontos de interseção destes caminhos podem ser detectados através de um olhar atento para cada uma das obras presentes no espaço da galeria.

Na série de fotos “Sem título”, vemos diversos registros de nuvens no céu. Nunca a mesma imagem é repetida. Trata-se de um work in progress ao qual a artista vem se dedicando desde 2003. Essa obra foi inicialmente inspirada em um trabalho do fotógrafo americano Alfred Stieglitz, que consistia em uma série de pequenas fotografias de nuvens que o artista intitulou de “Equivalents”, por considerar que aquelas imagens equivaleriam a sentimentos e emoções, cada qual específico, singular. Tendo como ponto de partida essa relação de identificação entre sentimentos humanos e natureza, Ynaiê Dawson começou a produzir imagens do céu nas mais variadas situações de tempo, lugar e horário. Temos desde céus de um azul límpido, aos mais carregados; dos mais solares, aos que surgem como um presságio de tempestade. As imagens finais, cortadas em círculos e agrupadas em série, acabam por apresentar, cada uma, um pequeno mundo, único, ao mesmo tempo tão igual e tão diferente de todos os outros. O que aparentemente surge como o sempre igual, o céu de cada dia, caso olhemos atentamente traz guardado um repertório de singularidades.


A representação da natureza pela arte esteve muitas vezes associada ao sublime, ao belo, aqui a artista busca fazer com que estas imagens de paisagens encontrem ecos também no mundo de agora, no que ele se apresenta como lugar de transformações velozes, ansiedade, nomadismo e perda de identidade. Daí a repetição serial destas imagens em grande quantidade, num movimento contrário a vontade de singularizar as mesmas. O que poderia derivar em pura contemplação, nos fazendo escapar do entorno, acaba por trazer uma carga de aceleração e excesso que inverte o senso comum ligado a essa espécie de representação.


No que toca a relação entre sentimentos e natureza que motivou Stieglitz, e repercute na jovem artista, podemos lembrar das palavras de Fernando Pessoa: “Em todo o momento de atividade mental acontece em nós um duplo fenômeno de percepção: ao mesmo tempo que temos consciência dum estado de alma, temos diante de nós, impressionando-nos os sentidos que estão virados para o exterior, uma paisagem qualquer, entendendo por paisagem (...) tudo o que forma o mundo exterior num determinado momento da nossa percepção. Todo o estado de alma é uma paisagem. Isto é, todo o estado de alma é não só representável por uma paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem. Há em nós um espaço interior onde a matéria da nossa vida física se agita. E – mesmo que não se queira admitir que todo o estado de alma é uma paisagem – pode ao menos admitir-se que todo o estado de alma se pode representar por uma paisagem. (...).”


Essa relação dialética entre exterior e interior é um dos movimentos postos em obra por Ynaiê Dawson. A insistência pela representação do céu revela um olhar voltado para fora, para o horizonte, aquele ponto ao qual nunca chegamos, mas que nos serve de guia e representa um infinito de possibilidades, a outra série de fotos presente na exposição traz à luz um olhar voltado para dentro, para o que há de mais íntimo, o próprio corpo. Quando ainda distantes essas fotografias surgem para os nossos olhos como desenhos, e sim, são quase desenhos. Ynaiê escolhe somente linhas do corpo para apresentá-lo, e através de um jogo de exposição de luz dá a ver um branco luminoso, que toma conta de quase a totalidade da cena.


As linhas do corpo surgem, ao mesmo tempo, como limites e como ponto de contato com o mundo exterior. Aquela camada de pele mais tênue que nos separa do exterior e estabelece um corte, uma descontinuidade; mas que também gera a possibilidade do toque, da troca. O sutil erotismo destas imagens faz lembrar que na fusão com o outro o contínuo torna-se possível, nas palavras de Bataille é no erotismo, no encontro de dois corpos, que esta quebra da descontinuidade a que somos fadados do nascimento a morte é possível, acontece.


No vídeo, em loop, “Fio condutor”, que completa a mostra, vemos o passar incessante de um fio - que com a velocidade tornam-se fios - pela janela de um trem em movimento, com um céu nublado ao fundo. A trilha sonora do vídeo contribui para doar uma atmosfera de repetição, continuidade, espécie de mantra onde natureza e homem novamente se misturam, sem um desfecho estabelecido. A paisagem parece sempre igual, mas é sempre outra, o olhar está em permanente movimento. Essa atenção para as singularidades em meio ao que surge como o mesmo está presente em toda a mostra. Fio condutor que alinhava, por fim, a primeira individual da artista, colocando o público frente a uma investigação que busca pensar as possibilidades do infinito, o contínuo, a dialética entre exterior e interior. Todas essas procuras, perguntas, que marcam o início da construção de um vocabulário próprio de Ynaiê Dawson.


Luisa Duarte, Rio de Janeiro, Fevereiro de 2006